Quarta-feira, 27 de Novembro de 2024
Por Redação Rádio Pampa | 24 de abril de 2022
Na virada de 2019 para 2020, estabeleci uma meta: no novo ano que se aproximava, iria me sentir bem. Evidentemente, eu nem cogitava o surgimento de um vírus que viraria nossas rotinas de cabeça para baixo. Depois de três anos tomando antidepressivos, ansiolíticos, testando as mais variadas vertentes de psicoterapia, acupuntura e reiki, eu só queria experimentar o que via no meu feed do Instagram.
Sei que muito daquilo não é verdade, mas como seria viver um dia inteiro sem dor de cabeça? Como seria acordar com disposição para correr cinco quilômetros antes das 7h? Aliás, como seria acordar antes desse horário?
A verdade é que o desejo de se sentir bem é inerente à humanidade. “O que mudou nas últimas décadas foi a procura pelo bem-estar imediato, o tempo todo querer algo que gere prazer. E aí tem um lado da demanda, das pessoas procurando por esse bem-estar, e o da oferta, de uma indústria que captou a tendência, mas a amplificou e aprofundou”, observa o sociólogo André Salata, professor da pós-graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). “E essa indústria promove a promessa de um bem-estar que não demanda sacrifícios.”
Os problemas começam na definição do que seria “bem-estar”. “Ele não existe do ponto de vista absoluto, é uma construção social”, defende o professor da PUCRS. De acordo com o Instituto Nacional de Wellness dos Estados Unidos, bem-estar é um processo consciente, autodirecionado e em constante evolução para alcançar o potencial completo.
Nesse processo, vale tudo: de acupuntura e medicina ayurvédica a alimentos e temperos como couve, quinoa e cúrcuma, passando por agendas para acompanhar a movimentação planetária, máscaras faciais que prometem o rejuvenescimento da pele e cristais para equilibrar a energia do corpo. A questão é que, entre todos esses modismos, há práticas para as quais já existem evidências científicas e outras que podem ser consideradas pseudociência.
Nem o Sistema Nacional de Saúde brasileiro, o SUS, escapou dessa moda. Em seu rol de práticas integrativas e complementares, política oficializada em 2006 com aprovação unânime do Conselho Nacional de Saúde, há tanto métodos com eficácia científica comprovada para o gerenciamento do estresse, como yoga e meditação, quanto outras sem embasamento: imposição de mãos (que visa restabelecer o equilíbrio do “campo energético” humano), apiterapia (que usa produtos derivados de abelhas para fins terapêuticos) e constelação familiar (método psicoterapêutico que busca reconhecer a origem dos problemas de um indivíduo em membros da família). Essa última ultrapassou fronteiras da saúde e chegou ao Judiciário, que usa a constelação familiar para solucionar conflitos.
Para o jornalista Carlos Orsi, fundador do Instituto Questão de Ciência, o rótulo vago seria um modo de burlar a regulamentação das agências sanitárias. “Para prometer que seu produto vai trazer benefícios à saúde, é necessário ter autorização da agência regulatória, e para obter a autorização é preciso provar que funciona”, explica. “É um rótulo mercadológico para entrar nas entrelinhas, driblar a letra da lei para não serem enquadrados em charlatanismo.”
Embora concorde que nenhum produto vai resolver a vida de alguém e que existem várias categorias de bem-estar, a publicitária Nicole Vendramini acredita que existem, sim, hábitos que podem ajudar as pessoas a se sentirem melhor. “A gente nunca esteve tão avançado do ponto de vista de ciência ocidental e tradicional, mas nunca tão doente como sociedade. Alguma coisa não está funcionando”, avalia Vendramini. Foi esse pensamento que a levou a criar, em 2019, a Holistix, marca brasileira que se propõe a “ajudar as pessoas a criarem bons hábitos e a gostar deles” e que aposta na “ciência da criação de hábitos e vida saudável”.
Entre os itens que ajudariam nesse processo estão: raspador de língua (carro-chefe da marca), óleos essenciais, misturas para bebidas e objetos de papelaria. “Nossos produtos são só a pontinha da história, porque somos uma empresa e precisamos de dinheiro para nos sustentar”, pondera Nicole, que assegura: “A gente se inspira na ciência ancestral, mas só traz soluções que sejam ancoradas na ciência moderna.”
De fato, existem milhares de artigos relacionados ao bem-estar. Digite “wellness” no buscador do PubMed, plataforma que reúne publicações científicas do mundo todo, e você vai se deparar com mais de 200 mil resultados. E isso só na parte de ensaios clínicos, aqueles que envolvem voluntários para determinar a segurança e a eficácia de intervenções de saúde. O número desses ensaios saltou de 3.151 no ano 2000 para 18.097 em 2020.
O problema é que esses trabalhos são, em sua maioria, muito específicos e feitos com poucos participantes, quando não inconclusivos ou sem a constatação de alguma eficácia.
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