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Por Redação Rádio Pampa | 22 de janeiro de 2023
Os romanos já sabiam: “navegar é preciso; viver não é preciso”. Fernando Pessoa (1888-1935) adaptou a “frase gloriosa” a seu próprio gênio: “Viver não/é necessário; o que é necessário é criar”. Em “Pessoa: uma biografia”, recém-lançada no Brasil, Richard Zenith, um dos maiores estudiosos da obra do poeta fingidor, mostra que o desassossegado lisboeta oscilou sempre entre “o mundo da ação” e “o mundo interior dos sonhos” e, não raro, preferiu criar a viver.
A biografia dá um punhado de exemplos inusitados da disposição de Pessoa de colocar a obra acima da vida. Ele era ligado em astrologia e comunicava-se com espíritos para discutir seus projetos literários. Um deles, um inglês chamado Henry More (filósofo que de fato existiu), disse que o poeta, que à época já beirava os 30 anos, precisava se curar da virgindade. A castidade o impedia de produzir uma obra literária completa. Os espíritos chegaram a indicar algumas candidatas a sua cama, mas ele se limitou a fazer projeções astrais e escrever sobre encontros fictícios, como se tomasse notas para um romance.
“A escrita mediúnica, em vez de motivá-lo a ter uma vida sexual ativa, evitou ou pelo menos adiou a necessidade de sexo real”, escreve Zenith. À certa altura, os espíritos o aconselharam a romper com Ofélia, a única namorada que teve. Segundo o biógrafo, Pessoa provavelmente morreu virgem e “não era heterossexual, homossexual, pansexual nem assexual”. Todavia, escreveu uma pá de poemas libidinosos (hétero e homoeróticos) em português e inglês.
“Pessoa não negou sua sexualidade, mas a realizou através da escrita. Transferiu sua energia sexual para a obra. Os heterônimos, por exemplo, são uma espécie de autofecundação”, diz Zenith de sua casa em Lisboa. “No fim da vida, Pessoa uniu vida sexual à espiritual. Quando era mais novo, tratava a virgindade como problema. Pensava que não se realizar sexualmente prejudicaria sua obra. Mais tarde, passou a acreditar que a virgindade era uma vantagem em sua trajetória espiritual”.
A discussão sobre a arte como expressão da sexualidade de poeta ilustra bem a estratégia à qual Zenith recorreu para driblar a dificuldade de biografar um personagem “fanaticamente reservado”, “cuja vida essencial se passava no imaginário”.
O fingidor era sociável, bem-humorado, vivia rodeado de amigos e às vezes exagerava na bebida. Mas não se abria com ninguém. Levou uma vida pacata. Sustentava-se redigindo cartas comerciais em inglês e francês – era melhor que lhe ditassem o que escrever, pois, caso surgisse a chance, começava a fazer literatura ou filosofar. Também trabalhou com publicidade. Criou um anúncio para a Coca-Cola – “No primeiro dia: Estranha-se. No quinto dia: entranha-se” – que, em parte, contribuiu para que o refrigerante fosse banido do país. Segundo o Ministério da Saúde, o slogan era um “convite ao vício”. Portanto, se realmente não havia cocaína na bebida – o que testes já haviam comprovado -, a Coca-Cola era culpada de propaganda enganosa.
Fatos como esses, porém, pouco dizem sobre o escritor Pessoa. Zenith, então, optou por “mapear, na medida do possível, sua vida imaginativa”. Pensou até em escrever em primeira pessoa, fingir que era o poeta que, do além, repassava sua existência. Mas desistiu. À procura do mundo interior de Pessoa, viajou até Durban, na África do Sul, onde ele cresceu, entrevistou descendentes de familiares e amigos do autor de “Mar português” e revirou os arquivos do poeta, que deixou mais de 25 mil papéis em seu famoso baú.
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A estratégia de Zenith deu tão certo que “Pessoa: uma biografia” ultrapassou as mil páginas. Lançado primeiro em inglês, o livro concorreu ao Prêmio Pulitzer, já saiu em Portugal e está sendo traduzido para o espanhol, o turco, o chinês e o coreano.
Nascido em Washington, em 1956, o biógrafo se aproximou de Pessoa no início dos anos 1980, no Brasil, onde lecionou na Universidade Federal de Santa Catarina. Desde 1987, vive em Lisboa. Traduziu Pessoa para o inglês e organizou diversas de suas obras, como “O livro do desassossego”.
“Apesar de ser muito português, é também muito brasileiro pois sua pátria era sua a língua. Pessoa é universal”, diz. “Ele tem o dom de exprimir nossas angústias com mais eloquência do que nós mesmos”.
Talvez porque ele próprio fosse uma multidão. Zenith contabilizou mais de cem heterônimos do poeta. Do primeiro deles, Chevalier de Pas, cavaleiro francês que se correspondia com o Pessoa de 6 anos, a Maria José, a única mulher, tuberculosa que escrevia cartas de amor a um serralheiro, passando pela Santíssima Trindade formada por Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis.
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