Sexta-feira, 10 de Janeiro de 2025

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Sabe a criança que logo vai nascer? Que pensará ela no futuro? Que valores professará? Em que acreditará? Como ela obterá seus valores, pensamentos e crenças? Há quem acredite que cada qual estabelece, por triagem própria, os “seus” valores. De certa forma, sim; sempre haverá em cada indivíduoa alguma particularidade advinda de margem de escolha sua, porém, será pouca. E essa particularidade será mais idiossincrática do que ideológica, e nunca será cultural, dado que a cultura é um habitat, um conjunto de condições determinantes que nos antecede.

Embora toda criança nasça equipada com informações genéticas que direcionam seu desenvolvimento, a cultura, a sua condição social e a sua história pessoal interagirão com a biologia, direcionando-lhe suas concepções futuras. Criança não nascem com pensamentos elaborados. Quero dizer: o pensamento que cada pessoa terá não será concebido por ela, mas resultará da sua relação com o mundo: será mais colhido, mais seu, se a pessoa for intelectualmente indagadora, buscadora de saberes; se for conformada às circunstâncias, simplesmente receberá pensamentos prontos e os reproduzirá, como a maioria de nós o faz.

Idiossincrasias são características comportamentais individuais, no máximo de um grupo; são peculiaridades mais do agir do que do pensar. Ideologias são as consciências sociais, elas dependem do meu lugar social. O meu lugar social me fornece um sistema de ideias, interesses, compromissos, expectativas etc. que legitimam o mundo na condição em que nele estou. As crenças circulantes no meu mundo me fornecem os dados do meu pensamento, logo eu penso e valorizo as crenças circulantes no meu mundo. Culturas são as grandes e perduradouras tradições que formam os “modos de vida”, abrangem além da minha classe social e do meu tempo.

Em resumo superficial, nós compreendemos o mundo a partir de uma cultura, o sopesamos ideologicamente, nele nos manifestamos idiossincraticamente.

A Tradição Ocidental, ou seja, a cultura do Ocidente é um tanto greco-romana, mas é sobremaneira semita-judaica-cristã-católica-protestante. Essa tradição cultural reelabora ideologicamente, com fundamento em uma coleção de escritos chamada de Bíblia, inclusive o que herdamos do pensamento greco-romano. Na cultura, sob concepções ideológicas e com características comportamentais próprias (idiossincrásicas), educamos nossas crianças. A Bíblia orienta sobre como fazê-lo.

Fico nos Provérbios: “Quem se nega a castigar seu filho não o ama; quem o ama não hesita em discipliná-lo” (13:24). “Os golpes e os ferimentos eliminam o mal; os açoites limpam as profundezas do ser” (20:30). “A insensatez está ligada ao coração da criança, mas a vara da disciplina a livrará dela” (22:15). “Não retires a disciplina da criança; pois se a fustigares com a vara, nem por isso morrerá. Tu a fustigarás com a vara, e livrarás a sua alma do inferno” (23:13,14). “A vara e a repreensão dão sabedoria, mas a criança entregue a si mesma envergonha a sua mãe” (29:15).

Essas “sabedorias” têm status tradicional destacado na nossa cultura. O modo cristão de ler o mundo foi, e ainda o é em grande parte, uma cultura largamente reproduzida em lugares sociais relevantes, o que a torna totalizante. Os aparelhos ideológicos de reprodução das “ideias” bíblicas (igrejas, forças militares, escolas, mídias etc.) a fazem reverenciada, logo, acatadas. Essa transmissão ocorre há milênios.

Desde o imperador romano Constantino, cristão por conveniência, instaurador do poder católico, lá no início do Século IV, até a Revolução Francesa, no fim do Século XVIII, os católicos perseguiram e mataram todas as pessoas não cristãs que conseguiram. Seja, por 1500 anos seguidos fomos “inspirados” a nos infligir a nós mesmoas uma educação de obediência forçada, sob risco de morte, baseada num sistema disposto pela superioridade do imperador, pelo controle da igreja católica, pela organização familiar submetida ao patriarca.

Essa cultura alojou-se no seio das famílias, nos educandários, nos conventos. Em todo lugar essa hierarquia baseada no flagelo tinha a criança como a parte mais frágil. Nessa “racionalidade”, crianças eram adestradas, não educadas. Na tradição brasileira, o efeito simbólico do poder: o pai se sentava à cabeceira da mesa; às suas costas, ostensivo, alojava-se um relho, simbolizando e advertindo sobre o recurso possível à violência física.

Abaixo do relho, a pancada “amorosa”, nomeada palmada, emblema corretivo do chefe de família, podendo ser aplicada, também, pela senhora da casa. Seja lá quem a aplique, é o efeito simbólico de um fenômeno agressivo com pretextada intenção educacional subsistente em muitos lares atuais.

O significante desse modo de disciplinar uma criança é a nossa cultura de chicotes, varas, chinelos e tapas; esse significante precede o significado do uso do chicote, da vara, do chinelo, ou do tapa. O significante cultural disso se instalou na cabeça das pessoas como amor peloas filhoas; o significado disso acaba como um perverso amor àos filhoas.

Essas formas lamentáveis de amar estruturam-se no nosso modo de pensar e nos dão o sentido de, com violência “amorosa”, educar crianças. Suponho que essa brutalidade “carinhosa” seja a mesma que fundamente maridos disciplinando esposas, mães arrancando obediência de filhoas, porradas em gays, agressão a mendigos… Seja: agressão física como método correicional.

Não esgoto o assunto. O que mais eu teria a dizer sobre palmada, violência que alega cuidado, está na literatura pertinente. Aqui, só queria lembrar que como nós pensamos com o que nos foi dado a pensar, dificilmente pensaremos sobre as origens do nosso pensamento. A palmada, porém, tem uma péssima origem, é uma cultura moralmente vencida. Indígenas não convertidos por religiosos, por exemplo, não espancam suas crianças. Interessante, não?

Instagram: @leorosadeandrade

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