Quarta-feira, 30 de Outubro de 2024

Home Ali Klemt Precisamos falar sobre a dor do aborto

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De onde surgem os tabus? Por que certos assuntos não são tratados abertamente, ainda que sejam temas comuns a tantas e tantas pessoas?

É assim, por exemplo, com sexo, embora a grande maioria de nós tenha decorrido exatamente desse ato tão mundano – até 2018, apenas 8 milhões de pessoas eram fruto de inseminação artificial, ou seja, somente 0,01% da humanidade. Definitivamente o mundo depende de sexo para viver. O tema, porém, é proibido. Seria por conta da culpa de praticá-lo para fins que não sejam meramente reprodutivos? Haveria uma influência religiosa? Vou deixar as perguntas no ar, porque meu tema, hoje, é mais urgente.

Por que há tanto mistério sobre os casos de aborto espontâneo? Por que as mulheres não falam sobre isso? Por que, afinal, carregam esse fardo, muitas e muitas vezes sozinhas, como se tivessem culpa sobre o ocorrido?

Existe uma cortina de silêncio que paira sobre a maternidade frustrada de uma gravidez abreviada, mas você só tem permissão de olhar através dela quando passa pela mesma situação. Foi só assim que descobri o tamanho do contingente de mulheres que vivenciaram esse tipo de perda.

Porque é uma perda. É a perda de uma vida ainda em formação. É a perda de tantas expectativas criadas, tantos sonhos imaginados. É uma chance que, contudo, fracassou.

Fracasso: essa palavra pesa sobre o coração dessa mãe. Ela não “segurou” o bebê. O embrião “não vingou”. A gravidez “não deu certo”. É quase como se a mãe tivesse alguma culpa – e é assim há muitos séculos. As mulheres eram as responsáveis por dar ao homem um filho. Sangrar (ou seja, não engravidar) a tornava uma esposa inútil. Em alguns casos, isso poderia, inclusive, permitir a sua substituição por outra mulher.

A fertilidade sempre foi um trunfo. Pudera! É a forma de garantir a nossa existência no planeta Terra e garantir a sobrevivência da espécie. Essa é, aliás, uma das razões pelas quais as mulheres temem tanto envelhecer: a menopausa é a prova efetiva da nossa incapacidade de gerar novos frutos – ou seja, por um lado, nos tornamos inúteis. Nos dias de hoje, no entanto, em que vivemos sob o império da ciência e do conhecimento, precisamos ter essa conversa: abortos espontâneos acontecem em cerca de 15% dos casos – isso significa 23 milhões de gestações por ano no mundo inteiro.

É normal, mas não menos doloroso. A sociedade, porém, não acolhe essa perda da mãe com a mesma intensidade que acolhe quem perde um filho nascido vivo. E eu compreendo. Quanto mais se vive, mais memórias são deixadas. Incomensurável deve ser a dor e, em respeito a quem já perdeu algum filho, eu sequer me atrevo a tentar descrevê-la.

Há pouco (para não dizer nenhum) apoio emocional para que se lide com esse sofrimento – e, sim, é uma dor válida. Eu já passei por isso e sofri como um cão. Enquanto chorava quietinha, questionava o tamanho da minha dor e se era justo que meu coração estivesse partido quando há tantas outras tragédias acontecendo nesse mundo. Enquanto eu tentava diminuir o meu sentimento para que ele coubesse na caixinha que a sociedade separou para ele, dei-me conta de que cada um tem os seus dramas e que esse era um drama pessoal que eu devia me permitir sofrer, independentemente de ser “maior” ou “menor” que o de outras pessoas.

Eu poderia fazer como a imensa maioria das mulheres e simplesmente não falar no assunto. Deixar a lembrança quietinha naquele canto da nossa história em que guardamos as maiores frustrações. Mas foi exatamente poder falar sobre isso que me “curou”. E é também por isso que divido essa memória, porque certamente há muitas, muitas mulheres que passaram – ou que passarão – pela mesmíssima situação.

E a elas eu só tenho a dizer que, sim, se permitam sofrer e que, um dia, quando o filho vier, no tempo certo, tudo fará sentido. Afinal, apenas com a chuva é que conseguimos ter o arco-íris. O seu bebê arco-íris.

 

Ali Klemt
Apresentadora de TV

 

 

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