Sábado, 28 de Dezembro de 2024

Home Edson Bündchen Uma graça sem graça

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O humor serve para muita coisa, inclusive para falar sobre coisas sérias. Num país no qual a atualidade do passado é recontada diariamente pela repetição dos nossos problemas, não deixa de ser oportuno relembrar que um dos maiores ícones do humorismo brasileiro completaria 90 anos no último dia 23.04.2022.

Chico Anysio, além do humor convencional comum à sua época, também foi um arguto observador social, espelhando a realidade brasileira em muitos dos seus personagens. Um paralelo constrangedor entre seus tipos e o Brasil atual pode ser resgatado com Justo Veríssimo, protagonista do político corrupto para quem o “pobre teria que se explodir”, bordão satírico e trágico que perdura no tempo, não mais na voz de um humorista, mas na cruel realidade da sociedade de hoje. O pobre, definitivamente, continua se explodindo.

Mas Chico cavava mais fundo e sabia que havia razões por trás da miséria e, palavras dele: “no Brasil de hoje (ontem), os cidadãos têm medo do futuro e os políticos têm medo do passado. E, sabemos, esse medo é por tudo aquilo que deixou de ser feito e pela forma como foi feito, como tardiamente testemunharam os “mensalões”, “petrolões” e outros indigestos “ões”.

Esse passado repercute em nós, reclamando mudanças, a maioria delas agravadas pelo momento em que ainda patinamos em questões essenciais e retrocedemos em tantas outras, como na nossa institucionalidade, por exemplo.

Uma combinação de coincidências históricas nos legou aquilo que vivemos agora, entre as quais a grande onda antipetista e anticorrupção que foram decisivas nas eleições de 2018. A volta de Lula à cena política, após polêmica decisão do STF, tornou quase irreconciliável a convivência entre os extremos. O rancor e a intolerância nas redes sociais expressam isso.

Estamos mais divididos do que nunca. Podemos e devemos reagir, mas não ao preço de rasgar a Constituição e permitir que brasileiros se digladiem, inclusive fisicamente, que se flerte com o autoritarismo, que se coloquem em risco as eleições, que se aviltem as instituições. Os problemas reais do País não desaparecerão com bravatas, muito pelo contrário. O mercado reagirá mal aos atuais eventos, a volta da inflação é uma realidade, milhões estão desempregados e os problemas se avolumam.

Além disso, o mal-estar entre os poderes atrapalha a votação de matérias importantes no Congresso e, tristemente, vemos o tempo passar sem que haja um projeto estruturante para o País. Para que as necessárias mudanças ocorram é preciso entendimento, é preciso gestão competente, diálogo, respeito às leis e harmonia entre os poderes. Parte da sociedade, isso é fato, defende medidas antidemocráticas que são justamente açuladas por quem mais deveria garantir estabilidade. Parte também importante da sociedade já está muito contaminada por discursos sem sentido, plantados dentro de uma lógica diversionista, alimentada pelo ódio, pela eliminação dos contrários e supressão do pensamento divergente e, infelizmente, descolada dos legítimos interesses nacionais.

Convém lembrar que o fortalecimento institucional inevitavelmente passa pelo Congresso. Ataques indiscriminados a este ou aquele poder servem a projetos pessoais, nunca à Nação. Quem escolhe os ministros do STF são os Presidentes da República; quem os aprova é o Senado; quem escolhe os Senadores somos todos nós. Fica evidente que se trata de uma mudança que deverá ser gradual, a partir de modificações dentro das regras constitucionais. Fora disso o nome é golpe, e golpe é crime tipificado em Lei.

O medo do futuro, que Chico Anysio preconizara como uma sensação dos brasileiros da década de 90 do século passado, ainda perturba o sono de muitos. Não menos inquietante, são os sinais de que nossa realidade política ainda serviria de combustível para o deleite de Justo Veríssimo, mesmo depois de tantos anos. Sem descuidar do humor, é hora de pensarmos seriamente em que tipo de sociedade estamos nos transformando, e de que forma podemos evoluir a partir de problemas tão pungentes quanto os atuais.

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