Quinta-feira, 28 de Novembro de 2024

Home Variedades “Vergonha não é ser escravo, mas colonizador”, diz atriz Léa Garcia

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Aos 89 anos, Léa Garcia precisou tomar coragem para interpretar uma de suas três personagens na peça “A vida não é justa”. Diante da velhinha que comete adultério virtual paquerando na internet, a primeira reação da atriz foi: “Sou uma senhora, não vou fazer isso”. Depois de refletir, no entanto, se deu conta de que poderia estar presa aos próprios preconceitos.

“Me questionei. Sou uma atriz, afinal. Então, resolvi me libertar e assumir a personagem”, diverte-se ela, que celebra 70 anos de trajetória profissional com o espetáculo, dirigido por Tonico Pereira, e baseado no livro homônimo em que Andréa Pachá relata episódios de sua experiência como juíza de uma Vara de Família.

O tom de radionovela dado à montagem, idealizada pelo produtor Eduardo Barata e dedicada à atriz Françoise Forton, que morreu em janeiro, trouxe o recurso da fantasia, que ajudou a amenizar o constrangimento e deu mais conforto a Léa para embarcar na brincadeira. Foi quando, já livre das amarras, percebeu ainda que aquela era uma oportunidade de viver uma personagem distante das que vinham lhe oferecendo nos últimos tempos.

“Ultimamente, tinha virado atriz de dois personagens só. Me chamavam para fazer mãe preta ou mãe de santo. Está sendo agradável sair desse olhar estereotipado, que coloca a mulher negra idosa num determinado tipo de representação. Essas, agora, são simplesmente mulheres”, observa a atriz, intérprete também de uma pandeirista que se relaciona com um parceiro bem mais jovem, e de uma idosa solitária cujo marido só pensa em futebol.

Atuando em teatro, TV e cinema, Léa consolidou uma carreira de papéis marcantes. Junto com Ruth de Souza e Zezé Motta, é uma das maiores estrelas negras do cinema brasileiro, com mais de 20 filmes no currículo. Foi indicada ao prêmio de melhor interpretação feminina no Festival de Cannes de 1959 por “Orfeu Negro”, vencedor do Oscar de filme estrangeiro. Tornou-se referência, admirada pela qualidade de suas atuações.

Ela, no entanto, teve que lutar contra estereótipos a vida toda. E nunca conseguiu se ver livre por completo. Ao longo da carreira, fez mais papéis de personagens em posição subalterna do que qualquer outra coisa. Um sem número de empregadas domésticas e escravas. Cada vez que viveu uma dessas últimas, aliás, encarou um trauma de infância.

Léa diz que dentro de casa, não havia consciência sobre a questão racial. A mãe, costureira requisitada pela granfinada de Laranjeiras, bairro onde a família morava, desenhava no escuro do cinema os vestidos que via nos filmes americanos.

A consciência sobre as questões do povo preto na sociedade brasileira só veio quando Léa conheceu o dramaturgo e ativista Adbias do Nascimento, com quem teve dois filhos. Ela, que sonhava em ser escritora, se tornou atriz no Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias. A partir daí, sua trajetória artística caminhou junto com o ativismo.

“Enfrentei discriminação terrível e cruel não só porque era atriz, mas mulher negra. Tive que ter muito altruísmo junto a atores, produtores e empresas, e ter garra para superar tratamentos que recebi.”

Se era condicionada a personagens que não considerava representativos para o povo preto, o jeito era usá-los para dar o tom de denúncia. A vilã Rosa de “Escrava Isaura”, papel que considera seu cartão de visitas, hoje, seria uma ativista, imagina Léa:

“Na condição de escrava, ela lutava com as armas que tinha. Usou a sexualidade para evitar o tronco, que, junto com o navio negreiro, são os maiores vexames para o povo negro.”

Hoje, Léa vê com satisfação as transformações do mercado artístico. Diz que a saída para uma mudança profunda é aquela em que os negros sejam não apenas sujeitos, mas realizadores. Destaca a importância de autores negros contarem o que vivenciam e de produtores e diretores pretos imprimirem o seu olhar.

“Parece que os jovens descobriram agora esse genocídio da população negra, mas a primeira pessoa que denunciou isso foi o Abdias. Mas que está acontecendo é bom.”

Que conselho ela daria às atrizes como Taís Araújo e Camila Pitanga, que sempre a citam como figura fundamental para a abertura dos caminhos? Léa ensina:

“Elas não precisam de conselho, estão sabendo muito bem o que fazer. Devem dar continuidade ao espaço do negro no audiovisual, conquistado por mim, Ruth de Souza e todas que vieram antes. Ocupar espaço de forma digna e justa até atingirmos uma forma universal. Isso poderá acontecer não só com o nosso conhecimento, posições e reivindicações, mas com o outro lado. Quem precisa aprender é o lado de lá, porque vergonha não é ter passado por uma condição de escravo, mas sim, de colonizador.”

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